domingo, 2 de janeiro de 2011

Educação burguesa no seculo XIX

 

Entre quatro paredes
Espelhando-se na nobreza, a elite não queria saber de escola: seus filhos eram educados em casa por preceptoras rigorosas. De preferência, estrangeiras
Maria Celi Chaves de Vasconcelos
O que vai pela cabeça das nossas crianças? Houve um tempo em que a resposta a essa dúvida não estava apenas na família, muito menos na escola. Quem quisesse entender os hábitos e a visão de mundo dos brasileiros no século XIX, deveria prestar atenção a outra figura fundamental naquele período: a preceptora.

Dos brasileiros abastados, é claro. Sob a proteção de Sant’Ana, muitas mulheres letradas, principalmente estrangeiras, obtinham seu sustento trabalhando como educadoras dos filhos da elite. Contratá-las era uma prática comum entre os ricos do Brasil, copiada de tradicional costume da nobreza européia na educação de seus jovens fidalgos. As preceptoras residiam na casa de seus alunos, acompanhando-os não só nas lições diárias, mas também em atividades cotidianas, como missas, passeios e outros afazeres. Já os chamados professores particulares visitavam as casas dos estudantes semanalmente, ministrando aulas de primeiras letras ou de disciplinas específicas.

A vinda da família real e da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, impulsionou a criação de instituições de ensino no país. Mas isso não chegou a seduzir uma elite que via a educação como algo dispensável e, às vezes, até pecaminoso, particularmente para as mulheres, pois acreditava-se que a “doutorice” feminina as desviava do destino natural de se tornarem mães de família, inteiramente dedicadas à casa e aos filhos, comprometendo a obediência aos maridos e pais.  Além disso, as escolas públicas eram poucas e a qualidade do ensino, duvidosa. Pior do que isso para aqueles pais era constatar que as escolas permitiam a mistura de crianças e jovens de categorias sociais diferentes. Temiam a possibilidade de surgirem laços de amizade entre seus filhos e colegas desfavorecidos. Some-se a isso o fato de que a educação nas escolas implicava, obviamente, a divisão dos alunos em classes e o ensino coletivo. Essa proposta era bastante polêmica. Considerava-se que a uniformidade do conteúdo poderia ter nefastas conseqüências intelectuais. Como todos tinham que acompanhar o mesmo ritmo, o ensino inevitavelmente se nivelaria por baixo, para ajustar-se “ao talento e viveza do mais indolente e estúpido da classe”, afirmava em 1788 um articulista anônimo do Jornal enciclopédico, publicado em Portugal.

E se os nobres portugueses educavam seus filhos em casa, por que os endinheirados da terra não haveriam de fazê-lo?

A maneira mais usual para a contratação de preceptoras e professores particulares era por meio de anúncios publicados nos jornais. Famílias solicitavam os serviços de mestres para a educação doméstica, e os próprios mestres ofereciam seus préstimos. Dos candidatos era exigido que tivessem excelente conduta, independência da família, e que fossem solteiros. Contava também a posição social e a fortuna dos patrões para os quais já houvessem trabalhado. Excelente referência era ter ensinado “em casa de uma respeitável família brasileira”, ou mesmo em “casas de família nobre”. A experiência na função de preceptora era outro atrativo para os que buscavam esses serviços: quanto maior a idade, mais adequadas eram as candidatas – levando-se em conta que a faixa etária a partir dos 30 anos já era vista como “meia-idade”.

No princípio, as mulheres disputavam com os homens as mesmas possibilidades de atuação como preceptores, mas a partir da década de 1860 elas começaram a predominar na educação doméstica. Isso se devia à própria natureza das funções exercidas pelos preceptores, uma vez que precisavam residir com as famílias de seus alunos, entrando na intimidade das casas senhoriais, condições mais apropriadas a uma atuação feminina do que masculina.

Abria-se, assim, um campo privilegiado para mulheres estrangeiras, principalmente as alemãs, francesas e suíças. O fato de virem de países “civilizados” dava-lhes certa credibilidade, pois pareciam mais lúcidas e conhecedoras de inovações e tendências ainda não divulgadas longe das grandes metrópoles européias. Também eram bem-vistas as brasileiras que acabavam de chegar da Europa e as que tinham fluência em idiomas. Algumas delas eram filhas bastardas que haviam recebido a formação como herança, já que os pais não poderiam assumi-las publicamente. Esse era o caso de Martha de Vasconcellos, personagem central do conto A preceptora, de Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito em 1905, no qual a origem da preceptora portuguesa era assim descrita: “O pai de Martha era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe dela nas tranqüilas alegrias da família, uma família em que ela só podia ser a intrusa! Desde esse dia, Martha estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ânsia dolorosa, com um não sei quê de impaciência inexplicada” (p. 208-209).

As estrangeiras eram conhecidas por seu rigor em ensinar os pupilos. Algumas, intitulando-se adeptas de Rousseau, chegavam a submeter as crianças a atitudes de extrema perversidade. Muitas tinham como instrumentos de trabalho a “palmatória de páo”, “a vara de marmeleiro” e as “correias”. Os pais sabiam o que ocorria, mas de algum modo todos os excessos eram justificados pela teoria, na época inquestionável, de que “as crianças são difíceis e são necessários governantas e preceptores para educá-las, mas, sobretudo, para torná-las grandes pessoas”. Atos violentos eram aceitos como “bons princípios pedagógicos”, como descreve Sofie Deroisin em seu livro Petites filles d’autrefois (1997).

Os conhecimentos ensinados pela preceptora deveriam atender aos desejos da família que a contratava. Eram os pais que escolhiam, entre as matérias consideradas de educação, aquelas mais adequadas aos seus interesses para que fossem ministradas aos seus filhos.

Excetuando-se o português e o francês, que quase sempre estavam presentes nas lições oferecidas, os demais conhecimentos ensinados variavam entre a escrita, a leitura e contas, latim, inglês, alemão, italiano, espanhol, caligrafia, literatura, composição, religião, música, piano, gramática portuguesa, latina, francesa e inglesa, lógica, matemática, geometria, aritmética, álgebra, História do Brasil, geografia, desenho, pintura e aquarela. Para as meninas, havia habilidades específicas a serem ensinadas, como bordar, costurar, marcar, cortar, dançar, além de outros trabalhos manuais.

A duração dessa forma de educação era variada. O próprio mestre costumava atestar quando o aluno já estava apto a prestar os exames preparatórios para o curso secundário. Em outros casos, era a família que decidia quando era chegada a hora de dispensar os serviços do mestre, como fez a viscondessa do Arcozelo, que em 1887 abriu mão dos ensinamentos da preceptora para enviar seus filhos a uma escola em Paty do Alferes. Não foi um caso isolado. As elites começavam a cogitar a possibilidade de enviar seus filhos para colégios particulares ou estabelecimentos de ensino oficiais. Isso ocorria porque a propaganda atrelada ao movimento republicano e a legislação cada vez mais impunham a interferência do Estado na educação, por meio do controle das licenças concedidas aos professores e da discussão sobre a liberdade do ensino. Mas mesmo aqueles cujos filhos freqüentavam algum colégio, ou aqueles que os educavam eles próprios, em determinado momento recorriam aos serviços de uma preceptora.

Por outro lado, com a multiplicação dos anúncios de educação doméstica nos jornais, o serviço começou a ficar mais acessível às classes intermediárias. Na Europa, isso ocorria desde o século XVIII: o ensino em casa deixara de ser privilégio das crianças nobres para se tornar uma prática recorrente entre ricos comerciantes, altos funcionários e famílias de elite que se espelhavam nos hábitos da aristocracia. Esse movimento pela educação das crianças – a fim de que se preparassem melhor para a vida adulta ou, no caso dos meninos, para a ocupação das funções prioritárias na sociedade – era uma medida de progresso e ascensão social.

A função de preceptora era uma das poucas profissões aceitas e admitidas para mulheres que, sem ajuda financeira da família, precisavam de um trabalho fora de suas casas. Mesmo assim, somente aquelas que haviam recebido algum tipo de educação é que podiam candidatar-se a essa atividade, pois inúmeros conhecimentos eram exigidos pelos pais ávidos por criar seus filhos à semelhança da nobreza. Por “educarem” os filhos das elites, dominarem diversas áreas do saber e ocuparem um cargo ambicionado por estrangeiros que vinham para o Brasil, as preceptoras tinham lugar privilegiado nas estruturas sociais de sua época. Mas caminhavam num limiar muito tênue, entre o respeito à sua posição social e a imagem de empregadas das elites, tratadas como tal por seus senhores.

O contrato feito entre os pais e as preceptoras era informal, normalmente fruto de acordo verbal, sendo muito freqüentes a rotatividade e a descontinuidade desses serviços, com a dispensa das mestras a qualquer tempo, ou com as mesmas declinando da função. Se isso podia ser motivo de instabilidade e insatisfação, para algumas educadoras representava verdadeiro alívio. A alemã Ina Von Binzer, que veio para o Brasil em 1881, contratada para ser preceptora dos filhos de um grande fazendeiro na Província do Rio de Janeiro, foi uma delas: “É verdadeira sorte não se firmarem contratos aqui, nem se multarem as rescisões (...), podemos pelo menos fazer nossa trouxa quando julgamos que é demais”.

Maria Celi Chaves Vasconcelos é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e autora do livro A casa e os seus mestres: a educação no Brasil de Oitocentos (Ed. Gryphus, 2005).


Saiba Mais - Bibliografia:

ARAÚJO, H. C. Pioneiras na educação, as professoras primárias na viragem do século 1870-1933. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2000.
BINZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
MONTEIRO, M.C. Sombra errante: a preceptora na narrativa inglesa do século XIX. Niterói: EdUFF, 2000.